Dos 25 filmes que Bernardo Bertolucci realizou contam-se obras marcantes como 1900, O Último Imperador ou Um Chá no Deserto. Mas quando se pensa em Bertolucci é inevitável vir à memória O Último Tango em Paris, o polémico filme-choque de 1972. As razões da polémica evoluíram ao longo do tempo e ganharam nova atualidade nos últimos anos.

Em Portugal foi estreado logo após o 25 de Abril de 1974 e deu que falar. A promessa de cenas eróticas abundantes entre Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider) livres de censura motivaram autênticas romarias às salas de cinema do país, algumas vindas de Espanha (é que no país de nuestros hermanos o filme só foi exibido em 1978). Pode ver neste vídeo da RTP o testemunho pitoresco de um espectador português sobre as cenas «chocantes» de O Último Tango em Paris e, como bónus, a sua visão peculiar sobre direitos e deveres da sua mulher (avance cerca de 2 minutos do vídeo para ver a entrevista).
A polémica não ficou, naturalmente, confinada a Portugal nem a definição de «chocante» tinha noutras latitudes o mesmo significado que atraiu tantos milhares de espectadores portugueses ao grande ecrã. O Último Tango em Paris marcou uma alteração na forma como o sexo era retratado no cinema. Uma célebre crítica ao filme, da autoria Pauline Kael e publicada no The New Yorker, dá conta de como a sexualidade selvagem e agressiva do filme, «atirada à cara» do espectador, foi recebida com perplexidade e mesmo receio ao não encaixar nas abordagens tradicionais do cinema erótico, até então maioritariamente embrulhadas em registos humorísticos ou farsas.
Polémicas à parte, foi considerado um dos filmes mais importantes e singulares da história do cinema e tanto Brando como Bertolucci receberam nomeações para os óscares (melhor ator e melhor realizador, respetivamente).
Naqueles tempos, a polémica resumia-se (o que não era pouco) às cenas de nudez de Schneider, à diferença de idades das personagens, ele com 45 anos, ela com 20, e, é claro, nas cenas de sexo obsessivo, cru e cruel que a película mostrava. Hoje, quem pesquisar O Último Tango em Paris através do Google perceberá que mais do que a associação a prémios e louvores, é o debate sobre se Maria Schneider foi ou não violada numa das cenas mais icónicas do filme, a da sodomização de Jeanne em que Paul utiliza manteiga como lubrificante sexual, que marca a polémica atual em torno do filme.
Esta (nova) polémica remonta a 2007 quando Schneider, em entrevista concedida ao jornal britânico Daily Mail, declarou que não tinha conhecimento da cena, pois não constava do guião do filme. Segundo ela, foi Brando quem teve a ideia e que ele e Bertolucci só a informaram momentos antes de filmarem a cena. Schneider ficou furiosa. Apesar de não ter existido sexo na realidade, a atriz refere que se sentiu humilhada e um «pouco violada» pelos dois homens. Schneider acrescenta que as suas lágrimas durante a cena são reais.
Bertolucci, numa entrevista dada ao canal televisivo holandês NTR, em 2013, afirma que a utilização de manteiga foi uma ideia que teve com Brando na manhã da filmagem enquanto tomavam (verosimilmente) o pequeno-almoço no apartamento onde decorria a ação. Bertolucci, tal como Brando, não informou Schneider da utilização de manteiga, porque queria obter a reação dela enquanto rapariga e não como atriz. Segundo o realizador, Schneider passou a odiá-lo para o resto da vida (ao contrário da relação da atriz com Brando, pois mantiveram a amizade após o filme). Bertolucci acrescenta não se arrepender de ter filmado a cena, embora se senta culpado por Schneider ter sofrido da maneira que sofreu com a mesma.

Curiosamente, a polémica da «cena da manteiga» passou mais ou menos despercebida após as declarações de Schneider e, alguns anos depois, de Bertolucci. A atriz faleceu em 2011, vítima de cancro. Em 2004, com 80 anos, morrera Brando, que nunca falou publicamente sobre a cena em questão. O desaparecimento de Schneider parecia ter condenado de vez a polémica à irrelevância de uma qualquer curiosidade que figurasse como nota de rodapé nas enciclopédias de cinema, até que, em 2016, a organização espanhola de intervenção social, El Mundo de Alycia, difundiu um excerto da entrevista de Bertolucci à NTR com legendas em espanhol. O clipe foi rapidamente replicado pela imprensa espanhola e por vários órgãos internacionais.
Resta uma questão por esclarecer. Por que razão as declarações de Maria Schneider só foram levadas a sério onze anos depois de terem sido proferidas e mesmo as de Bertolucci, em 2013, foram praticamente ignoradas? Afinal a história de Scheider não parece diferente de inúmeras outras que o movimento Me Too tem denunciado sobre as más condutas ou abusos sexuais cometidos por homens proeminentes de Hollywood sobre atrizes em início de carreira e vulneráveis. O assunto, que envolve dezenas de figuras da indústria cinematográfica norte-americana foi motivada pelas acusações a Harvey Weinstein em outubro de 2017 (pode consultar aqui uma lista de personalidades do cinema e não só acusadas desde abril de 2017). A história de uma jovem atriz francesa de 19 anos, praticamente desconhecida, que terá sido (pelo menos) moralmente abusada por um ator de 48 anos que era uma das estrelas mais importantes do cinema mundial e por um realizador famoso, é na aparência precursora de diversas histórias entretanto tornadas públicas. Terá a denúncia ocorrido cedo demais? Ou, pelo contrário, a denúncia de Schneider foi uma das que lançou a engrenagem imparável que parece equilibrar hoje em dia a balança de poder em Hollywood entre homens e mulheres?

Qualquer que seja a resposta, a mesma parece ter chegado demasiado tarde para poder consolar Maria Schneider.