Poucas são dimensões da existência humana que conseguiram fugir ao impacto que a pandemia teve à escala global. Numa época de novos desafios e muitas incertezas, a resiliência das pessoas e das cidades, bem como a relação entre elas, será posta à prova. Os grandes centros urbanos, densamente povoados, revelaram ser o terreno perfeito para a transmissão massiva da doença e mostraram-se incapazes de dar uma resposta adaptada às necessidades desta nova realidade, já que a muitos dos seus habitantes terá faltado a sensação de segurança e de espaço, público e privado. Muitos acabaram por fugir dos centros urbanos. Importa perguntar: não estaria já o binómio pessoa-cidade fragilizado antes da chegada da doença?
A cidade pré-coronavírus: o impacto do turismo e da gentrificação
O processo de crescimento do turismo e os efeitos da gentrificação nas metrópoles mundiais há muito que geram discussões sobre a qualidade de vida na cidade, que diminui a um ritmo inversamente proporcional ao aumento das rendas. Esses aspetos exercem uma pressão extrema sobre as camadas sociais menos protegidas. Entre os casos de estudo surgem Lisboa e Porto, ambos debaixo da sombra da bolha imobiliária e vulneráveis ao investimento estrangeiro, potenciado pelos Vistos Gold como assinalava a Bloomberg ainda em 2019.
A elevada densidade populacional e a incapacidade financeira para ter acesso às oportunidades (saúde, educação ou cultura) que as cidades oferecem deixou muitas famílias de classe média, jovens e idosos à procura de alternativas que melhor se adequassem aos seus orçamentos, condições e necessidades. Para as famílias, espaços verdes, educação e maior proximidade à família estão no centro da decisão. Os idosos, por procurarem um ritmo mais lento e estruturas urbanas mais adequadas à sua faixa etária. No caso particular dos jovens, a maior mobilidade e literacia digitais tornaram-se dois fatores essenciais para permitir o trabalho remoto e compensar a eventual falta de emprego à escala regional.
Confinamento e distanciamento social: tempos de adaptação
Por todo o mundo, fomos assistindo à implementação de medidas políticas, económicas e sociais que promovessem um maior distanciamento social. Falamos do confinamento obrigatório, o encerramento de todos os espaços e atividades consideradas não essenciais, a transição para um modelo de trabalho remoto, a implementação do ensino à distância, a criação de novos padrões de consumo, a aposta no e-commerce e nos serviços de entrega ao domicílio.
Nunca na história estivemos tão conectados e separados ao mesmo tempo. Quem vive na cidade sentiu falta do ar puro e da natureza das zonas rurais. Quem habita no interior mostrou-se preocupado com as evidentes assimetrias regionais, com dificuldades sentidas no acesso à internet ou na falta de sistemas de entrega ao domicílio, por exemplo. Pesados prós e contras, a opção de muitos foi procurar habitação (temporária ou permanente) em áreas mais afastadas das grandes cidades, onde o esforço financeiro seria sempre mais pequeno e o espaço mais vasto.
Os dados relativos ao desemprego em Portugal nesta época talvez sejam reveladores desta nova realidade. Em junho deste ano, os concelhos do interior foram os únicos a registar uma variação negativa na taxa de desemprego, ou seja: diminuiu o número de inscritos nos centros de emprego. Para análise ficam os três mapas seguintes, referentes à distribuição geográfica do número de infetados em Portugal (05/2020), o valor médio das habitações (09/2019) e a variação da taxa de desemprego (06/2020), respetivamente.
Do Covid-19 ao futuro: que mudanças poderão ter vindo para ficar?
Cinco meses depois do início do “Grande Confinamento” começam-se a fazer os balanços deste “novo normal”. Especialistas apontam para a iminência uma grave recessão. Dados publicados em março pelo Banco de Portugal apontam para uma redução de cerca de 3,7% no PIB nacional, igualando valores de 2009 e 2012 (como pode ser visto no gráfico abaixo).
Apesar disso, muitas empresas começaram já a adaptar-se com sucesso ao reinventado modelo digital de negócios. A flexibilização do local de trabalho é uma condição que agrada tanto a empregados como a empregadores, que registaram um aumento na produtividade, apesar da quebra nas receitas (fator indissociável da estagnação económica). Alguns chegam mesmo a dizer que o trabalho “nunca mais será o mesmo”. O setor do imobiliário prevê que a procura de habitação em cidades menores ou mesmo zonas rurais seja tendência por mais algum tempo mas rejeita, por enquanto, dar força à teoria de um processo massivo de êxodo urbano.
Há mesmo quem lhe chame a Oportunidade Silenciosa, a hipótese de abrir um “novo capítulo para a pasta da valorização do interior”. Neste artigo, a jornalista Ângela Rijo sublinha “O espaço ganhou valor. Ele é agora um bem precioso, procurado por muitos. As cidades não vão deixar de ser centros de inovação e criação, mas a redefinição da vida nas cidades foi acelerada. É possível que saia desta pandemia um país com menos assimetrias regionais, um interior menos envelhecido, cidades menos poluídas, e um turismo sustentável, que continue a dar a conhecer ao mundo mais do que Lisboa e Porto.”