Realizador alemão recebido em Veneza por coro de assobios e fortes críticas durante apresentação da sua nova produção “O caminho dos alfinetes”.

Veneza acordou esta quarta-feira mergulhada num cenário de conto de fadas, ou talvez não fosse a intenção dos 150 “capuchinhos vermelhos” que se manifestaram à porta do Pallazzo La Grande Bellezza o de impedir a apresentação do novo filme de Lars Von Trier, “O caminho dos alfinetes”. Começou assim o terceiro dia do Festival anual de Cinema Lobo de Ouro.

Habituado a polémicas, o produtor alemão de 39 anos demarcou-se e absteve-se de ir longe nos comentários, dizendo apenas que tentou ser fiel aos originais contos orais dos alpinistas franceses nesta adaptação de “O Capuchinho Vermelho”, seguindo uma tradição anterior às Fábulas de Perrault ou aos Contos dos Irmãos Grimm.

A reacção veio através de um post no Twitter do director do festival, Giuseppe Garibaldi que tentou acalmar os ânimos e defendeu o realizador, dizendo estar a “ser alvo de chantagem” e relembrando ser negativo “censurar a liberdade artística, especialmente quando ainda não se viu o filme”.

Enquanto a conferência de imprensa decorria no interior do edifício renascentista, à sua porta uma multidão de capas vermelhas protestava juntamente com elementos da democracia cristiana, que num post do facebook considerou a longa-metragem “um insinuante atentado aos valores ocidentais e moral católica”. Associações de pais marcaram também presença contra esta versão da fábula juvenil, em que uma menina vai visitar a sua avó doente, deparando-se em vez disso com um lobo que a ataca.

Sara Vicenzo, lavadeira de profissão e porta-voz do movimento feminista #MeThree, diz que o filme deve ser retirado das salas de cinema, chegando a afirmar que a Associação Internacional da Sétima Arte foi longe de mais ao abrir as portas a este “horripilante espectáculo de sexismo, canibalismo e terror que deturpa o original infantil”.

Uma cinematografia recheada de casos polémicos

Provocador e polémico, Lars Von Trier está já habituado aos holofotes da crítica mais irrepreensível assim como a abalar e chocar mentalidades. Acusado de simpatizar com a causa nacional-socialista, de xenofobia ou misoginia, conta apesar disso com um extenso rol de êxitos e duas nomeações para os Globos de Ouro, fazendo oscilar a opinião do grande público entre admiração e ódio. O caso mais recente ocorreu com a estreia de Nymphomaniac, poesia erótica de uma viciada em sexo, personagem interpretada por Charlotte Gainsbourg.

Galardoado com dois óscares da academia, o produtor nascido no Schleswig-Holstein começou cedo a chocar as audiências com as suas incursões no cinema de culto e thriller psicológico, o que lhe mereceu a proibição de ser exibido na Rússia, Irão ou uma versão mais curta nos EUA. O realizador garante continuar comprometido com a sua arte, como atestam os filmes Anticristo e Melancolia, com cenas de nudez, sexo explícito e mutilação feminina.

A verdadeira história do Capuchinho Vermelho

Segundo o psicólogo norte-americano Bruno Bettelheim, esta é a história “que mais transformações sofreu desde a sua origem”, o que talvez explique porque “O Caminho dos Alfinetes” se tente reaproximar de um conto que, longe se ser infantil na origem,  começou antes nas lendas e tradições locais dos povos da Europa da Idade Média. Se no filme de Lars Von Trier podemos ver o homem-lobo (interpretado por Clint Eastwood) a perseguir uma jovem numa fuga para a morte, depois de a mandar despir e comer os restos da avó, os elementos eróticos e sangrentos presentes no original nunca se destinaram a criar um final feliz.

Em 1812, os Irmãos Grimm decidem incluir esta história na sua coleção de contos, baseando-se na obra do alemão Ludwig Tieck “Leben und Tod des kleinen Rotkäppchen”, removendo porém todo o rasto de elementos eróticos e sangrentos, simbólicos do atravessamento da puberdade e dos ensinamentos morais sobre a aventura dos jovens nas florestas. Pois o que seria um conto infantil sem o seu costumeiro final feliz?